Recordações

Há quem diga que recordar é viver. Na verdade, as recordações são coisas incríveis. O homem tem uma capacidade de memória fabulosa. Recorda coisas passadas décadas como se fosse no dia anterior. Lembra cheiros, sabores, cores, palavras, eventos e emoções. Nossa capacidade de lembrar é uma das maravilhas da mente humana, continuamente surpreendendo e desafiando a ciência. Todos temos recordações. A questão interessante, no entanto é: o que fazemos com nossas recordações?

Há muita gente que sofre com suas recordações. Como se não fosse suficiente sofrer uma vez o agravo, a ofensa, o acidente, a perda, a mágoa, a violação, a injúria, ainda ficam repassando vez após vez e sofrendo tudo de novo. Gente assim vive em depressão. Não conseguem sair do buraco porque há sempre uma recordação para lembrar de como são infelizes. Há sempre uma memória para os levar para baixo. Por mais que as coisas corram bem, sempre haverá uma recordação a lamentar.

Há também muita gente que faz uso da lembrança para vingança. Muitas são as histórias de gente que sobreviveu a situações terríveis pela simples força de lembrar o agravo e planejar a vingança. Quando garoto gostava de ler “O Conde de Monte Cristo”. Edmundo Dantés vivia cada momento de sua vida respirando a vingança contra seus detratores. A fabulosa fortuna que adquiriu, o conhecimento incrível que lhe adveio do contato com o Abade Faria e mesmo o amor da bela Haydée não eram suficientes para trazê-lo de volta à vida. Vivia para recordar e se vingar.

Há gente que usa as recordações para se fechar e retrair. Seguindo a famosa filosofia de que “gato escaldado tem medo de água fria” essas pessoas permitem que as memórias desagradáveis as fechem a todas as possibilidades de nova vida. Não têm coragem de amar, de experimentar, de ousar, tudo porque um dia, no passado por vezes longínquo, sofreram com uma experiência dessas. Aquele incidente os fez retrair como a tartaruga e assistem então a vida passar.

Há ainda os que usam a recordação para se vangloriar. No passado tiveram vitórias, conquistas, resultados vantajosos, e então passam o resto de suas vidas a contar as maravilhas de então. “Quando eu fiz isto”, “quando eu era aquilo”, “ olhe que já fui importante, já andei com fulano, já fiz tal e tal coisa”. Para essas pessoas viver é na verdade recordar. Deixaram de ter conquistas, deixaram de lutar por vitórias, deixaram de sonhar. Vivem na recordação do que aconteceu há muito tempo. Foi bom e pronto. Foi!

E há então aqueles que aprendem a recordar como Davi. O Salmo 18 foi escrito quando finalmente David se viu livre de seus inimigos. E como usou ele as recordações? Ele fora desprezado pelos irmãos, deixou a família ainda adolescente, foi alvo de inveja e intriga, sofreu tentativas de assassinato pelo próprio sogro, sua esposa foi dada a outro, andou vagando por montes e grutas e teve que recorrer a vida no estrangeiro. Tinha boas razões para recordar e chorar, ficar deprimido e em baixo. Quem sofrera como ele em sua geração? Mas não foi de depressão as suas recordações.

Mas tinha razões para vingança. Saul e sua família o maltratara, os Zifeus o denunciaram, os filisteus o odiavam, Doegue o traiu, Nabal o desprezou... havia uma boa lista de gente com quem ele tinha contas a ajustar mas não foi de vingança a sua lembrança.

Com tudo o que sofrera e finalmente livre de seus adversários era hora de descansar e buscar uma boa sombra e uma casa junto a um ribeiro. Davi tinha muitas e boas lembranças que o podiam ter levado a se retrair, a confirmar que todo homem é traiçoeiro, que em ninguém se pode confiar, que a melhor coisa é ficar sossegado em casa. Mas não foi motivo para retração a sua recordação.

E quem podia se gloriar mais que Davi? Ele matara Golias, derrotara os filisteus muitas vezes, pegara um grupo de homens sem futuro e fizera deles uma tropa de elite, escapara a todas as armadilhas de Saul e fora chefe de guerra até entre seus inimigos. Podia perfeitamente sentar-se a sombra de seus sucessos e passar o resto da sua vida se gabando de vitórias tão magníficas. Mas não foi para se vangloriar que ele recordou.

No Salmo 18 Davi recorda tudo que viveu e rompeu em adoração ao seu Deus: “Eu te amo de todo coração, ó Senhor, fortaleza minha. O Senhor é o meu rochedo e o meu lugar forte e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; a força da minha salvação e o meu alto refúgio.” Tantos motivos para depressão, para vingança, para retração ou mesmo orgulho e, no entanto, Davi se volta para o louvor. Ele adora, ele exalta a Deus, ele testemunha da graça e da benevolência do Senhor. Que extraordinário! Será por isso também que ele era o homem segundo o coração de Deus?

Acredito que todos nós teremos motivos para sofrer diante de nossas lembranças. Creio que haverá motivos para desejar justiça a nossos adversários e para nos fecharmos um pouco mais. Creio até que teremos alguns motivos de orgulho olhando para trás e é bom que assim seja. Mas o crente verdadeiro olha para sua vida, recorda suas lutas e louva. Ao filho de deus cabe o louvor. Lançando sobre Ele as tristezas, largando mão de nossas mágoas, lançando a seus pés nossas possíveis coroas, louvamos com gratidão porque é Por ELE, e para ELE que vivemos e existimos. Soli Deo Gloria!

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