Sempre que falamos de Deus, há em nossa mente alguma imagem
mas pouco clara. Isso acontece porque fomos criados num contexto cristão. Se
fossemos hindus, chineses ou animistas na América do sul ou África, teríamos
milhares de figuras animais e humanas para relacionar com Deus. Mas, no contexto
cristão aprendemos que o Deus verdadeiro é Espírito, não pode ser visto porque
não tem corpo e exactamente por isso Ele é omnipresente, ou seja, pode estar em
todos os lugares ao mesmo tempo. No entanto, tendo isso claro e sabendo isso no
coração, temos no principal rito cristão um acto que parece contraditório.
Pegamos um pão e obedecendo a ordem deixada pelo Senhor Jesus lembramos que Ele
tomou um pão na noite em que foi traído e disse: “Isto é o meu corpo”… e aí vem
a dificuldade. Se Deus é espírito, como falar de seu corpo? Ora isso é possível
por causa daquela maravilhosa doutrina cristã da encarnação. Essa é daquelas
doutrinas que envolvem grande grau de mistério. Deus feito carne e habitando
entre nós. Não cabe apenas na razão e exige fé apesar de nos dar boas
evidências.
Um de seus textos clássicos é Filipenses 2: 5 a 11.
“De sorte que haja em vós o
mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, Que, sendo em forma de Deus,
não teve por usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a
forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem,
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso,
também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na
terra, e debaixo da terra, E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o
Senhor, para glória de Deus Pai.” Filipenses 2:5-11
Muitos estudiosos da Bíblia crêem que neste texto Paulo
transcreve a letra de um hino cantado pela igreja nos seus primórdios o que nos
dá ainda mais um toque de valor desta passagem tão amada. Ela nos fala do
caminho todo da salvação e nos deve ajudar a meditar nesse mistério da
salvação. Vejamos brevemente o que a encarnação nos ensina:
Amor Gracioso
A encarnação envolveu esse amor de Deus que não se pode
explicar. Só o conceito da Graça pode ajudar a entender como Deus faria isso
pela humanidade caída em pecado e longe dele em rebelião. Deixar a Glória só
poderia ser feito num acto de graça amorosa porque nada que o homem fizesse
justificaria tal gesto. Nada nem ninguém poderia obrigar Deus a encarnar. Cada
vez que olhamos o pão e o vinho e sabemos que o Senhor deixou sua Glória por
nós temos que nos encantar com esse amor. O verdadeiro amor faz isso. O ser
amado que entende ou percebe o amor que lhe é votado, nunca deixa de se
maravilhar pelo facto de ser amado porque sabe não merecer. Encarnação é amor
puro. Esse amor que é a essência de Deus. E quando somos tentados a duvidar do
amor de Deus devemos encarar a encarnação como sinal e prova de um amor que não
pode ser negado ou duvidado.
Humilhação
Mas a encarnação envolveu um grau inimaginável de
humilhação. Não há como o entender. Podemos fazer algumas conjecturas e propor
algumas analogias mas sempre estarão muito abaixo da realidade. Imagine um rei,
acostumado a todos os confortos, a todo luxo, à criadagem e serviçais e a tudo o
que há de bom na terra. E um dia ele deixa o palácio e vai viver como um
desabrigado, um sem tecto. Fica na rua, pede esmolas, vasculha caixotes de
lixo. Dorme numa lixeira. Que imagem impressionante, mas não suficiente. Porque
ao encarnar o Senhor não somente deixou sua Glória mas veio tomar a forma de um
ser infinitamente inferior e na verdade criado por ele. Um rei a viver na rua
ainda teria a mesma natureza dos outros mendigos porque na prática são todos
seres humanos. Mas Deus deixou o céu para viver com criaturas menores. A
analogia mais próxima seria nós nos tornarmos insectos para ficar um pouco mais
perto. Insectos com consciência humana vivendo entre insectos… nem dá para
imaginar o que seria. Que humilhação. O Senhor fez isso por nós. Mas porque?
Identificação
Por amor, para identificação. O amor verdadeiro se
identifica. Não fica de longe mandando ajuda. Entra na realidade, vive a
realidade para poder entender e ser entendido. Quando queremos falar sobre
entender alguém ou entender sua situação falamos em nos colocarmos nos sapatos
de alguém. Jesus fez isso por nós. Ele calçou nossos sapatos, vestiu nossa
humanidade. Esse amor prático que vai ao encontro do ser amado é o grau mais
avançado de amor. E ao viver entre nós ele entendeu como ninguém nossas lutas e
fraquezas. Costumamos pensar em Deus como um ser zangado com o pecado. Mas na
verdade sua ira é manifestação de sua santidade e de sua tristeza. Imagine a
dor que Deus sente porque Ele na verdade sabe. Quando vê um refugiado em terra
estranha, quando vê alguém perseguido por sua etnia ou fé, quando assiste a
alguém a passar fome, quando percebe um homem ou mulher abandonado pelos que
julgava serem seus amados, quando vê alguém a ser torturado e morto, ELE sabe.
Ele passou por tudo isso. Encarnação é identificação. Daí que Deus não veio a
nós adulto e formado. Isso seria tão fácil e aparentemente pouparia tanto
tempo. Mas não seria identificação plena e Ele faz tudo perfeito. Veio como um bebé,
para passar por tudo que passamos e poder entender ainda melhor tudo que somos.
E sua identificação implicou em sofrimento.
Sofrimento
Toda encarnação leva a sofrimento, porque é impossível entrar
na vida de outro sem sofrer o que ele sofre. E Jesus veio viver como servo e
como servo se submeteu a tudo e mesmo a tortura e a morte. Quando tomamos o
pão, é um pão que simboliza um corpo torturado e morto. Ele não ficou por
palavras e instigações. Não veio ao mundo para nos animar ou dar incentivos.
Não veio apenas para ser um bom exemplo. Deu a si mesmo por nós. A encarnação
levou a essa dor e ele sabia e por isso teve que se humilhar de tal modo. Foi
seu amor que o levou a suportar tudo e a Palavra diz mesmo que suportou com
alegria. Quando uma mãe se sacrifica por um filho, ela pode até sofrer, mas
sofre com alegria se pensar nas vantagens que seu filho terá. Uma mãe, se tiver
que escolher entre a sua vida e a de seu filho, pode escolher morrer e com
alegria pela satisfação de pensar no futuro de sua criança. Com Jesus vemos
esse tipo de amor ao máximo. Deus criador de tudo, Ele sofreu por sua
humanidade pelo prazer de saber que isso a levaria a restauração e aqui
chegamos ao coração da encarnação.
Salvação
A encarnação era necessária porque só um homem poderia
saldar a dívida do homem com Deus. Logo, o salvador tinha que ser um homem. Fora
um homem a pecar. Fora o representante da humanidade a ofender a Deus e se
tornar rebelde. O problema com Deus era do homem, só um homem poderia tratar
dele. Mas todos os homens nascem sob a sombra do pecado e acabam por sucumbir. Todos
trazem no coração a inclinação para o mal e não o conseguem vencer. Logo, só
Deus poderia viver uma vida sem pecado necessária para redenção. Assim, Deus
teve que se fazer homem para poder nos ganhar a salvação. Novamente as obras são
uma afronta a Deus. Só Ele poderia fazer o necessário para nossa salvação.
Pensar algo diferente é fazer pouco da encarnação do Senhor. Afinal é o homem
que tenta a salvação pelas obras que se mostra orgulhoso. Só o Deus encarnado,
Deus e Homem, poderia, então, tratar de saldar a dívida que existia e fazer a
reconciliação entre Deus e o Homem. E ao fazê-la temos o retorno à Glória.
Glorificação
A exaltação do Senhor Jesus veio quando a missão estava
cumprida e a encarnação tinha feito sua função. Ele volta a Glória do Pai mas
de certo modo diferente. Aqui entramos em terrenos santos e onde temos que
pisar com todo cuidado. Mas, ao pensar na encarnação, percebemos que Deus muda sua própria essência de modo sublime, extraordinário e
misterioso para nos salvar. Jesus faz-se homem e ao voltar ao céu leva essa
encarnação ao alto do trono e nos promete a Glória com ele. Não dá para
entender, mas dá para nos maravilharmos. Como pode ser isso possível? Por amor.
Voltamos ao começo. O amor fez possível. Deus é amor e sua essência fez isso
possível. O Deus que encarnou e nos salvou é o soberano que recebe nome mais
exaltado e senta-se à direita do Pai.
Para nós a encarnação é então motivo de louvor apaixonado.
Como não adorar um Deus que de tal modo se dá por nós pecadores sem
merecimento. Cada vez que tomamos o pão e bebemos o vinho devemos meditar na
maravilha misteriosa da Encarnação e o quanto ela representou para que
pudéssemos cantar a redenção do Senhor.
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