Cristianismo sem Cicatrizes


Quando a segunda guerra mundial se aproximava do fim e as bombas aliadas castigavam as cidades alemãs, Stuttgart foi uma das mais danificadas. Era ali que vivia e ministrava Helmut Thielicke. E foi aí, no meio dos destroços do templo de sua congregação que ele liderou os crentes em adoração e pregou uma dês suas mais famosas series de sermões. Aquele era uma igreja que conhecia a realidade de louvar nas ruínas. Um conceito desconhecido da igreja ocidental moderna.
 O evangelicalismo atual cedeu à tentação da promoção rápida e do marketing feroz com sua promessa de crescimento imediato. É comum ouvirmos hoje os pregadores da palavra usarem a linguagem da propaganda de modo descarado anunciando o evangelho como se fosse mais um produto e o cristianismo como outra tendência de mercado. Há uma valorização máxima do desconforto e da insatisfação para então se anunciar a cura rápida, a prosperidade instantânea e a salvação barata de um evangelho que perdeu acutilância e verdade. Talvez o maior problema da propaganda nem seja tanto que cria necessidades artificiais mas que atua nos desejos naturais dos seres humanos explorando essas carências e levando a expectativas imediatistas e exageradas.

E logo temos um cristianismo sem medula, sem fibra. Crentes que desconhecem a Bíblia ou qualquer ideia de disciplina espiritual mas que estão prontos a citar textos desconexos e fora de contexto para justificar suas expectativas exageradas. São crentes que reclamam da qualidade do serviço divino quando qualquer dificuldade surge e voltam as costas à Igreja assim que seus desejos deixam de ser cumpridos.

Um Cristo sem cruz, uma salvação sem expiação, uma fé sem prova, uma vida sem teste, para um mundo sem pecado pode nos dar uma filosofia de auto-ajuda mas não Cristianismo. Esse cristianismo sem cicatrizes não conhece a angústia de Job, o silêncio expectante de Abraão, as lamentações de Jeremias e as marcas no corpo de Paulo. Desconhece que “no mundo tereis aflições” (João 16:33) e que “todos quantos querem viver piedosamente sem Cristo Jesus serão perseguidos” (II Timóteo 3:2).

Os propagandistas da fé "marketeira" são rápidos em nos lembrar que somos filhos do rei, mas esquecem de acrescentar que o reino não é deste mundo (João 18:36). Eles gostam de citar as promessas divinas mas esquecem de dizer que a maioria delas é condicional. Citam repetidas vezes que Jesus tomou nossas dores e enfermidades mas ainda assim morremos de câncer. Simplesmente não há como evitar todo o dano colateral do pecado neste mundo.

O mundo no qual vivemos jaz no maligno. É um mundo caído no pecado cujo salário é a morte. A criação geme sob esse peso e a sua libertação é algo futuro. Não podemos fugir dos efeitos do pecado particular e nem do pecado geral da nossa raça. Prometer o contrário é falácia. A salvação que nos liberta da condenação não nos transporta instantaneamente para o paraíso. Ainda temos que guerrear com o inimigo, o mundo e a carne.

A intimidade com Deus que se anuncia em cânticos espirituais que tomaram nossas igrejas falam de tocar no Senhor e sentir a sua presença, mas temos que lembrar que esse relacionamento é único e diferente de tudo que temos neste mundo. A verdade é que nem sempre “sentimos” o Senhor, que não podemos tocar em suas vestes, e que na maioria das vezes que oramos a sensação clara é de que se trata de um monólogo. Isso não é desvalorizar todas as maravilhosas respostas de oração que temos mas tirar o crente das expectativas que prometem faze-lo andar nas nuvens com o Pai quando isso não vai acontecer.

 A transcendência de Deus é bíblica e parte importante da sã doutrina. Ele não é nosso coleguinha e não está a espera de que peçamos algo para sair correndo a cumprir nossos desejos. Lidamos com um Deus Santo, Poderoso, Transcendente e Majestoso a quem devemos honra e reverencia, temor e tremor. Os servos do Senhor que tiveram um vislumbre de sua Glória, não correram para abraça-lo, antes caíram com o rosto em terra como mortos. O Temor do Senhor ainda é hoje o princípio da sabedoria.

 Não queremos com isso tirar a alegria da fé cristã mas torná-la realista. Não desprezamos a intimidade, mas apelamos à sua verdadeira expressão. Não retiramos da vida em Cristo sua excelência antes recordamos que traz também suas cicatrizes, dores e lutas. Negá-las ou deixar de as entender é fugir da essência da fé. O Cristão verdadeiro não é o que se vangloria da prosperidade mas o que pode dizer como Paulo que sabia viver em qualquer circunstância porque era capacitado por Deus. O verdadeiro crente não é o que sempre obtém o que quer mas aquele que pode afirmar como Habacuque que “ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide... todavia eu me alegrarei no Senhor e exultarei no Deus da minha salvação” (Habacuque 3:17 e 18).

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