“O Vento, as árvores, a atmosfera eram controlados pelo poder da Palavra. Mas a Palavra não era algo que se pudesse ver. Era uma força que permitia que uma coisa criasse outra.” (parte do mito Wapangwa -Tanzânia- da Criação) (FORD 1999:177)
Tive o privilégio de ser criado por uma das maiores contadoras de histórias que conheci. Minha mãe, Márcia Venturini de Souza. Ela não apenas contava histórias, ela as tornava vivas na minha imaginação. Cada inflexão, gesto, mudança de ritmo, alteração de voz, cada pormenor serviam para dar cor, textura e mesmo paladar e perfume às histórias.
Recordo-me que no culto infantil da Primeira Igreja Batista de Nova Iguaçu, mamãe sempre começava dirigindo-se aos adultos e pedindo que fizessem de conta que eram crianças. Achava divertido o pedido, mas era na verdade desnecessário, pois qualquer pessoa que a ouvisse contar histórias tornava-se criança na hora, e com todo gosto!
Lembro-me ainda de a ver contando histórias a rudes pescadores da aldeia de São Mateusnos Açores em Portugal. Aqueles homens curtidos pelas tempestades do Atlântico Norte terminavam os episódios com lágrimas nos olhos.
Uma boa história rompe barreiras, ganha corações, é universal.
Vivendo no contexto de Missões em África, aprendi que a habilidade de minha mãe era uma das mais valiosas para os missionários. Na grande maioria dos casos, o evangelista terá muita dificuldade em pregar um sermão ou passar os famosos três pontos da homilética anglo-saxônica. Mas, se souber contar e aplicar bem uma história, estará garantido. Qualquer auditório pode ser ganho e elucidado se o orador for um bom narrador de casos e é por isso que vejo o missionário (e porque não dizer o pastor) como um contador de histórias. Nessa arte, creio que o missionário deve se desenvolver em três caminhos principais que passaremos a considerar.
Trabalharemos o contexto Africano que é o que conhecemos melhor, mas na perspectiva que as verdades expressas sobre os povos africanos podem ser extrapoladas para outras partes do planeta.
O primeiro caminho a ser seguido pelo missionário contador de histórias é o do garimpo de histórias tradicionais que servem para comunicar o evangelho. Um estudo cuidadoso providenciará muito material de valor. Quase todas as etnias do mundo têm histórias da criação do mundo e do homem, algumas com expressões surpreendentes como a citada no inicio deste artigo.
Também interessante é notar que muitos desses chamados mitos, falam de algo que o homem fez que afastou Deus de seu convívio. Para os Mende (Serra Leoa) Deus se foi porque ficou cansado dos pedidos constantes do homem. Os Ashanti (Gana) dizem que Deus foi embora porque a mulher o incomodava batendo com seu pau de pilar na sola de seus pés. Os Banyarwanda (Ruanda) crêem que Deus ia acabar com a Morte, mas enquanto Deus a caçava houve uma mulher idosa que se apiedou dela e a escondeu. Deus se irou com isso e deixou o homem ficar com a morte.
Já os Bambuti (Congo) dizem que o pecado original foi a curiosidade da mulher que queria ver o homem. Ela levava água até a cabana de Deus diariamente e a deixava na porta. Um dia se escondeu para ver quando Deus sairia para pegar a água e desse modo viu quando a divindade colocou o braço de fora para alcançar o balde. Deus se irou com isso e foi embora.
Muitos outros povos contam a queda do homem em termos muito próximos do relato de Gênesis. O homem pecou ao comer o que era proibido. Para os Pare (Tanzânia) o fruto proibido era o ovo, para os Chaga (Tanzânia) o nhame, para os Barotse (Congo) foi a carne dos animais que Deus dera como companheiros e não alimento, para os Mbuti da floresta de Ituri (Congo) foi o “tahu”. Já na etnia Fang (Gabão) o pecado original foi o orgulho do homem que se deixou encantar pela força e beleza que Deus lhe dera.
Em outros contextos, além do pecado encontramos contos messiânicos extraordinários. O povo Sonjo (Tanzânia) tem um herói nacional chamado Khambageu. Ele viveu entre os Sonjo fazendo milagres de cura e maravilhas, mas foi morto por homens maus. Ressuscitou e foi para o Sol e um dia voltará, antes do fim do mundo, para levar todos os que tiverem a sua marca. Por isso cada Sonjo recebe uma cicatriz no ombro esquerdo para estar preparado para a vinda de Khambageu. Vários outros povos africanos contam de crianças messiânicas que tiveram nascimento milagroso e que vieram ao mundo para acabar com o mal na figura de um monstro ou feiticeiro. É o caso do mito de Lituolone dos Basuto (África do Sul), de Mwindo dos Nyanga (Congo) e de Bagoumâwel dos Fula (Mali). Em todos esses mitos, a criança milagrosa vem ao mundo para vencer o mal, sofre morte atroz, mas renasce para ser vitoriosa e libertar o mundo.
Há histórias tradicionais comoventes como a que os Ila (Zâmbia) contam sobre uma mulher que queria ver a Deus. Inicialmente ela construiu várias torres para tentar chegar ao céu, mas em cada caso a madeira da base apodrecia antes de ela chegar a seu objetivo. Por fim ela resolve andar até encontrar o ponto onde o céu e a terra se tocam para achar o caminho até Deus. Ela nunca chega a esse lugar e morre sem solução. Dificilmente poderíamos criar um conto mais vivo para falar da inutilidade das nossas obras na busca da salvação.
Encontramos igualmente, inúmeras histórias morais na tradição dos povos, que servem para transmitir verdades sobre questões sociais diversas. Na Guiné-Bissau onde trabalhamos, são comuns as histórias usando animais. Um grande número delas usam como personagens principais o lobo (no caso guineense a hiena) e a lebre. Nesses contos, o lobo (símbolo da força bruta) é sempre derrotado pela lebre (símbolo da esperteza) e desse modo se demonstra a superioridade da inteligência sobre a massa muscular.
Os provérbios pictóricos também são úteis para ilustrar princípios vitais. “A tartaruga quer dançar mas não tem cintura” é um dito crioulo que explica que muitas vezes querer não é poder. “Janti i ka nada, tchiga ki tudu” (adiantar-se não é nada, chegar é que é tudo) é outro dito que ressalta a importância da finalização dos projetos. Outra maneira de colocá-lo em linguagem popular brasileira seria “Iniciativa não é nada, acabativa que é tudo”. Estes são apenas uns poucos exemplos de como contos e provérbios da terra podem ser usados pelo missionário.
O obreiro que souber procurar, certamente terá à sua disposição um rico arsenal de histórias, lendas e provérbios que podem ser utilizados para falar de verdades bíblicas. O seu uso o tornará simpático à população local, demonstrará sua valorização da cultura da terra e fará com que sua mensagem seja entendida mais facilmente. É uma excelente opção na busca da transmissão contextualizada da palavra.
Veja mais exemplos práticos de histórias que dão muito resultado!
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4 comentários:
este artigo é uma ferramenta muito útil para o missionário e não só, para o educador cristão que precisa transformar conceitos abstratos em histórias concretas.
É a maneira mais poderosa de se experimentar qualquer coisa, de fazer conexões entre culturas e povos diferentes, de expressar-se ao redor duma fogueira de acampamento mundial. (agora no post certo)
Veja Chris Abani on the stories of Africa
http://www.ted.com/talks/chris_abani_on_the_stories_of_africa.html
Ida Venturini escreveu: Lembrar de Marcia Venturini sempre é dolorido pois a saudade é muito forte. Joed herdou este dom de contar histórias e na Guiné elas até hoje sào contadas através da Rádio Jam Jamaa e através dos Pastores da PIB de Bafatá, pr.Demba Kanté e pr.Konko Faderá. As histórias são inesquecíveis!
Rita Domingues escreveu no facebook: quando era criança, ouvi muitas histórias contadas por ela nos acampamentos. Ela conseguia caracterizar várias personagens ao mesmo tempo. Conseguia com muita rapidez e perfeição fazer a voz do homem, da mulher, da criança, do idoso ou do estrangeiro. Era fantástico ouvi-la. Parecia várias pessoas a falar.
Forneceu-me muitos materiais de apoio para o trabalho com crianças nos Açores. Trabalhava arduamente para que os mesmo chegassem a tempo. Muita coisa feita à mão.... Computador? Somos uns felizardos....
qui. às 20:16 ·
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